quarta-feira, 8 de março de 2017

David Hume: o empirismo cético (por F. Savater)



David Hume nasceu em Edimburgo, em 1711[1]. Estudou Direito, mas dedicou-se à Filosofia, à História e Diplomacia; chegou a ser subsecretário de Estado.
Levou o Empirismo Inglês ao seu estádio de maior radicalidade. Rejeitou as Ideias Inatas e defendeu uma perspetiva profundamente cética. Proclamou que não conhecemos mais dos que as nossas próprias Impressões e Ideias.
Disse que a Política e a Ética não se sustentam em princípios racionais, mas na utilidade comum e no sentimento de simpatia, através do qual somos capazes de nos colocarmos no lugar dos outros.
Fernando Savater:

Vamos hoje falar de um filósofo representativo de um século que é, talvez, um dos séculos mais extraordinários, do ponto de vista intelectual, de toda a grande aventura humana. O século XVIII, século do Iluminismo, o chamado século das Luzes. Normalmente, quando falamos deste século, centramo-nos em França: no Enciclopedismo (francês), em Voltaire, Rousseau, etc. Mas, quem sabe, a figura individual mais notável, mais destacada deste século tão extraordinário, terá sido um filósofo escocês, nascido em Edimburgo – localidade muito mais pequena do que Paris, mas que teve um grupo extraordinário de pensadores com grande importância no século XVIII. E o mais importante deles, foi David Hume.

Hume não partiu da Filosofia; chegou à Filosofia. Foi formado em Direito e foi também um extraordinário historiador[2] e finalmente um grande filósofo.
Já John Locke havia insistido que não nos podemos fundamentar em nada de inato – ideias, fundamentos – mas que, pelo contrário, todas as ideias que temos, recebemo-las do mundo [exterior ao sujeito]. Este Empirismo (dizer que o que conta como fonte do conhecimento é a empiria, a experiência) é absolutamente radical em David Hume.
Para David Hume são as impressões que recebemos do mundo [através da experiência] que são as únicas fontes do conhecimento. Deste empirismo radical nasce a obra deste filósofo sagaz, prudente e audaz nas suas posições intelectuais – tanto que nem sempre podia afirmar claramente tudo o que pensava sobre diversos assuntos, pois chocava as crenças estabelecidas na época.
David Hume nasceu na Escócia, de uma família não muito rica, mas pertencente à nobreza. Ficou órfão de pai aos dois anos e foi criado por sua mãe, juntamente com suas irmãs e seu irmão mais velho que, de acordo com os costumes da época, herdou as terras da família. David foi, assim, destinado à carreira «das Leis», mas os seus verdadeiros interesses eram literários; desde pequeno que se dedicou a ler os grandes autores gregos e romanos. Obtido o seu título de advogado logo começou a exercer esta profissão, em Bristol. Porém, pouco tempo depois decidiu viver do que escrevia e viajou até França, onde passou a viver em 1732. Instalou-se em La Fléche, em cujo colégio jesuíta havia estudado René Descartes.
 


Redigiu, nesse período, a sua primeira obra importante: Tratado da Natureza Humana. Acreditava que esta obra lhe traria celebridade e fortuna, mas, na realidade, não teve grande êxito, o que o dececionou profundamente. No seu Tratado, Hume partia da teoria do conhecimento de Locke e radicalizava o seu Empirismo. Criticava certos princípios que, todavia, operavam na obra de Locke: o eu, a substância, a causalidade e a indução. Para efetuar esta crítica Hume realizava uma descrição rigorosa do conhecimento: quando conheço um objeto tenho certas sensações ou Impressões e certas Ideias, que são como a ‘cópia’ das Impressões; cópia que pode dar-se como memória (recordação), como projeção imaginativa (imaginação) ou como conceptualização abstrata.
As Ideias são, então, representações mentais. De modo que, a partir das Impressões se constituem as Ideias Simples e, a partir de associação de Ideias Simples, formamos as Ideias Compostas ou Complexas. Todas as Impressões e Ideias geram em nós a convicção de que realmente existem os objetos externos que as provocam. Mas, na realidade, do que posso estar de facto seguro, é de que tenho uma sensação ou Impressão e que isso gera a crença de que existe realmente uma realidade exterior [o Mundo].
Não obstante, o objeto que conheço não é exterior a mim, mas está, sim, na minha consciência[3], pois consiste somente num conjunto de Impressões e Ideias. Se eu afirmo que as minhas Impressões e Ideias correspondem a um objeto real, faço-o por um ato de crença.
Hume afirma que nos iludimos, que criamos certas Ideias às quais não correspondem Impressões, como:
- a ideia de causa-efeito [causalidade];
- a ideia de espaço e tempo;
- a ideia de substância.
Todas estas ideias são fundamentais para a Ciência; ainda que sejam ilusórias, a Ciência apoia-se nestas ideias básicas. Sobre elas construímos o mundo do conhecimento, ainda que não haja Impressões que lhes deem a validade objetiva que parecem ter, certamente há que reconhecer que o homem não pode viver fora de uma certa crença instintiva na realidade – mas, no fundo, o que entendemos por realidade, reduz-se a um certo número de Impressões.
(...)

David Hume, que foi uma das mentes racionais mais poderosas da sua época concede, na sua Filosofia, grande importância ao que não é estritamente racional: as emoções, a simpatia, os movimentos anímicos são fundamentais para a vida e para a sociedade humana. É interessante verificar que, perante a imagem estereotipada de que as grandes inteligências sempre são ‘frias’, há evidências de que alguns dos maiores talentos racionais da história da humanidade, compreenderam a importância da dimensão do ‘irracional’ na vida humana. E a ideia de Hume é que tudo é, por nós, recebido do mundo que nos rodeia, e que recebemos tudo por meio das nossas capacidades: dos sentidos, que são as ‘janelas’ que, em nós, se abrem para o mundo. Tudo o que não podemos comprovar, o que não podemos verificar [pela experiência], realmente não podemos dizer que exista.

Entretanto podemos fazer a ‘introspeção’ de que falava Descartes: busquemos o subjetivo, busquemos a certeza [a verdade absoluta]. Ora, Hume mostra-se descrente e crítico desta posição cartesiana, do Eu penso, logo existo. Descrê dessa certeza: portanto, pensas; mas porque existes? Porque é que tem de existir um sujeito (um eu) nesse pensar? Não poderia ser um pensamento sem sujeito [substancial]? Quando digo «chove descrevo que algo ocorre, mas não é necessário, a partir daqui, um sujeito da chuva – que algo chove, um sujeito do ato de chover.
Não. Para Hume não podemos pensar algo como um «eu», um núcleo fixo e estável NO QUAL AS NOSSAS Impressões são ‘depositadas’; somente posemos afirmar que temos Impressões, que temos pensamentos, que temos sentimentos. O ‘eu’ é uma construção que fazemos para suportar todas as Impressões, mas não é algo a que possamos chegar através dos sentidos.
Até este ponto radical, ao mais radical que pode chegar o ceticismo – o questionamento do ‘eu’ –, chega o ceticismo de Hume


A causalidade, a substância e o eu, segundo David Hume, são somente crenças, pois que, de facto, jamais temos experiência delas. Se me atenho somente à experiência, devo dizer que o ‘eu’ me aparece como uma amálgama de sensações, como um puro fluir de atos de consciência e não como um eu substancial. A ideia de substância, por seu turno, dissolve-se num conjunto de sensações que nós agrupamos espácio-temporalmente; e quanto à causalidade, é considerada como uma conexão necessária entre dois ou mais fenómenos: O fenómeno antecedente é chamado ‘causa’ e o fenómeno consequente é chamado ‘efeito’. Ao falarmos de conexão necessária, isto implica que à causa se segue inevitavelmente[4] o efeito.
Se considerarmos o que ocorre quando uma bola de bilhar toca noutra após uma tacada, observamos um movimento em que a 1º bola toca na 2ª, e esta movimenta-se e toca na 3ª. Consideramos tratar-se de um movimento causa-efeito, mas não temos a experiência desta relação[5] . Somente podemos afirmar a sucessão temporal e a continuidade espacial. Mas a causalidade, não: é apenas uma crença fundada no hábito.
Este problema da causalidade está imediatamente ligado ao da indução:
Se observarmos 1 cisne branco… 10 cisnes brancos… 1000 cisnes brancos…
Não podemos daí concluir que todos os cisnes são brancos. De modo que a indução é um método que tem um gravíssimo problema, no que diz respeito à sua fundamentação: toda a tentativa de codificação da indução parte do princípio de regularidade da natureza, que não é um princípio derivado da experiência mas, ele próprio, uma inferência indutiva.
Esta análise de Hume desemboca no ceticismo radical: todo o conhecimento científico se apoia, segundo ele, em meras crenças. As únicas certezas que me são permitidas são, por um lado, as que derivam da descrição das minhas Impressões e das suas relações com as minhas Ideias e, por outro, as que se manifestam nas relações quantitativas das matemáticas.





[1] Cerca de um século depois do nascimento de Descartes (1596-1650) e 65 anos após a sua morte.
[2] Escreveu uma obra de grande dimensão e qualidade, em 8 volumes: História de Inglaterra. Durante parte do século XIX foi mais conhecido como historiador do que como filósofo, embora o seu contributo para o desenvolvimento do pensamento filosófico, nomeadamente ao nível da Epistemologia, seja incontornável. Kant referir-se-lhe-à como a um Mestre, dizendo que foi a leitura das suas obras filosóficas que lhe permitiu acordar do sono dogmático e elaborar a sua filosofia crítica. (nota da docente de Filosofia)
[3] Sob a forma de representação.
[4] Necessariamente, inevitavelmente e universalmente.
[5] Temos, apenas, a experiência da sequência dos movimento.

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