segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O Deambular na Polis - 2

Temos medo de que os extremistas cheguem ao poder. Simplificando massivamente, tal deve-se a uma de duas coisas: ou não compreendemos a sua luta e o porquê da sua enorme afeição a determinada política, ou são exemplares das mais baixas evoluções societais ao nível do(s) indivíduo(s).
 Mas e se os extremistas já estiverem no poder, mascarados de progressistas, liberais (quer a nível económico ou a nível social), ou homens de lei?Observámos isto esta semana, quando uma mulher, vítima de violência doméstica, foi apelidada, por parte de indivíduos (incluindo uma mulher) ligados a cargos importantíssimos no sistema judicial português, de p***. Os agressores acabaram por receber penas leves (como já é hábito em Portugal) e atenuadas. Mas, porque foram atenuadas? Ora, porque a Bíblia defende que a mulher adúltera - como era o caso desta senhora - merece a pena de morte. Observa-se aqui, então, uma triste realidade: os extremistas já estão entranhados no sistema.
 Levantam-se duas questões:
 1) Poderá um livro religioso ditar o destino de "criminosos"?
 2) Qual foi a reação da sociedade perante esta demonstração de atitudes retrógradas?
 Vejamos primeiro o segundo ponto: a reação foi, no geral, negativa. Críticas chegaram de todos os lados: associações de defesa das mulheres, outras figuras de autoridade, e, interessantemente, de extremistas de um lado do espetro político tradicional, mas não do outro. Porque é isto interessante? Porque os islamofóbicos (apesar de preferirem ser chamados de "Defensores da Cultura Europeia"), que normalmente defendem a sua posição anti-imigração com o argumento de que "O Corão defende os maus tratos contra as mulheres, os infiéis, etc. ad nauseam" permaneceram quietos e calados. Porquê? Porque, desta vez, o problema se passou na tão querida pátria amada, e não num país muçulmano? Porque a Bíblia está sempre certa?
 Aproveito para recordar que uma das posições inicialmente defendidas por estes políticos de bancada era a da defesa incondicional da mulher europeia, devido a uma série de casos de violações atribuídos aos refugiados. Porquê a mudança tão drástica de posição? Não há problema, pois foi lido o livro que lhes convém, ou não lhes convém desta vez a defesa das mulheres europeias?
Quanto toca à filosofia, aproximam-se de Hipócrates, mas só em nome.
 Que esta situação sirva de aviso: os extremistas já se infiltraram no sistema. Agora, cabe ao povo decidir: somos ou não um estado laico? Ou voltaremos à Inquisição?

Blade Runner, de Ridley Scott (1982)

Acerca do visionamento e comentários dos alunos de FILOSOFIA A – leituras e reflexões retiradas dos trabalhos realizados pelos/as alunos/as:
Roy Batty
Blade Runner é um filme que pode ter uma leitura filosófica, se entendermos que a questão que lhe subjaz é a questão fundamental da Filosofia: o que é o Homem?

Perguntar «o que é o Homem?» é procurar onde reside a sua Humanidade. 
Podemos, desde logo, afastar o critério do aspeto ou aparência (os Replicantes Nexus 6 são robôs perfeitos, andróides com aspeto humano), na senda, aliás, da Filosofia clássica desde Parménides de Eleia e Platão.

Poderemos, então, encontrar esse critério na Razão, como afirmou o Racionalismo e o Idealismo? Blade Runner demonstra a insuficiência desta resposta. Os robôs da série Nexus 6, os Replicantes – principais personagens do filme, a par do seu caçador, Rick Deckard – sendo idênticos aos seres humanos ao ponto da sua identificação ser demasiado difícil e subtil, eram, no mínimo tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram. Foram criados para colonizar outros planetas, sendo usados como escravos em tarefas perigosas e situações de alto risco – foram, portanto, concebidos como se fossem seres humanos elevados à perfeição: mais inteligentes, mais ágeis, mais fortes, mais belos.  Após um motim violento protagonizado por um grupo de Replicantes Nexus 6, são declarados ilegais; alguns fogem para a Terra. Os Blade Runner são a polícia especial cuja missão é exterminar os Replicantes fugitivos – ‘atirar a matar’. A solução final é entregue a Deckard.


Mas o que  distingue, afinal, os Replicantes dos seres humanos? As Memórias (ou melhor, a sua ausência, uma vez que não tiveram infância). As Emoções (o seu criador não lhes teria inculcado a faculdade emocional). E a Duração (os Replicantes Nexus 6 estavam programados para uma vida útil de apenas quatro anos).

Todos estes critérios vão sendo postos em causa no decorrer do filme: as memórias ‘fictícias’ de uma infância que não tiveram mas ‘criaram’ questiona, também, a essência da Memória, desse reservatório seletivo com o qual reescrevemos grande parte do passado a partir da inteligibilidade do presente.

A memória, as emoções e os sentimentos que, afinal os Replicantes desenvolveram estão na base de uma das cenas clássicas do filme e do cinema, a morte de Roy. Depois de salvar o seu perseguidor da morte, mostrando a clemência que a ‘humanidade’ de Deckart, o caçador de androides, não logrou, Roy recorda com emoção o que viveu e assinala que essas recordações morrerão com ele, dissolver-se-ão como lágrimas na chuva.


Esta cena, de uma extraordinária beleza, interpela temas clássicos da Filosofia, como a existência de Deus e a imortalidade da alma; interpela, conjuntamente, o problema do sentido da existência, da morte e da finitude.
Será que os andróides conquistarão, também uma vida para além dos quatro anos da sua duração útil? Esta questão decorre do filme e da cena da morte de Roy – será, quiçá, a pomba que se liberta das suas mãos, como uma ‘alma’ que busca a eternidade. Não esqueçamos que, qual Zeus que vence o seu divino pai, Cronos, Roy assassinara com as suas mãos potentes, Tyrell, o criador dos Replicantes que se negara a aumentar-lhes o tempo de vida. A morte de Deus.



O que é o ser humano? Qual o caminho da humanidade, senão, dirão os existencialistas, a infinita angústia da consciência da finitude? Agora, mais abandonado, num universo onde ‘Deus está morto’?  Esta é a essência do ‘ser homem’, a busca transcendente que, no filme, é empreendida pelos andróides, mais humanos do que os humanos: são eles que questionam o sentido da finitude, são eles que procuram Deus como resposta possível – e não a encontram. Assim, a morte de Roy é a morte de um homem sem deus, é, de certa forma, a morte de deus afirmada numa atmosfera cinzenta, chuvosa e niilista, sob o céu de uma inclemente Los Angels, algures no futuro representado no ano de 2019. 


FICHA TÉCNICA:

Título original - Blade Runner
Ano - 1982
Duração - 117 min.
País: Estados Unidos
Diretor: Ridley Scott
Guião: David Webb Peoples, Hampton Fancher (Novela: Philip K. Dick)
Música: Vangelis
Fotografía: Jordan Cronenweth
Elenco de atores: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Daryl Hannah, Edward James Olmos, Joanna Cassidy, Brion James, Joe Turkel, M. Emmet Walsh, William Sanderson, James Hong, Morgan Paull, Hy Pyke
Produtora: Warner Bros. / Ladd Company / Shaw Brothers

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O Deambular na Polis - 1

Serão as teses antigas ainda úteis? Serão mutáveis?
O problema que colocarei hoje em cima da mesa de operação, para ser dilacerado e tão profundamente cortado quanto possível, envolve uma das minhas "filosofias" preferidas: o Estoicismo.
Ora, os estoicos eram árduos defensores de que nunca deveriamos tratar os que nos trataram incorretamente da mesma maneira; ou seja, não só não pagar na mesma moeda, como nem um único cêntimo dar de volta aquele/a vagabundo/a que nos maltratou.
Um exemplo dado é o de uma simples pergunta: Faria sentido morder um cão caso este nos mordesse, dar um pontapé numa mula na eventualidade de esta nos dar um coice, etc.?
Ora, aqui encontramos um problema na prática estóica, que, na verdade, não é um problema mais do que uma simples característica desta doutrina filosófica: aceitar a natureza, e, igualmente importante, mudar o que se consegue mudar, e o que não se consegue mudar aceitar.
Os mais famosos filósofos argumentavam também que a fúria se mantinha na nossa alma mais tempo do que o ódio.
Logo, voltando à pergunta: posso eu pagar na mesma moeda?
Ora, não podemos aqui criar um falso dilema. Cada situação terá a sua maneira de ser interpretada, o que também variará de indivíduo para indivíduo.
Se aceitarmos esta doutrina a cem por cento, não teremos, na condição de sermos completos mestres de nossos corpos e almas, mais infelicidades, mágoas, etc., porém, estamos também a deixar com que nos aconteçam eventos da mais baixa ralé, e não podemos reagir de qualquer maneira.
Passando de uma das minhas bases para outra, vejamos Hegel, que, se não me engano, afirmou que as doutrinas antigas em nada se aproximavam às doutrinas da sua altura, pois os problemas do Homem evoluiram.
Aqui está o fundamento para a ressurreição do Estoicismo como força de auto-ajuda e de bem-estar geral. Pois, como disse o meu tão estimado Karl Marx nas suas "Teses sobre Feuerbach": "Os filósofos até hoje focaram-se apenas em analisar o mundo de diferentes maneiras; o objetivo é mudá-lo.".
Por estas razões, na minha opinião, a primeira coisa que um estóico do século XXI tem de aceitar é a mutação inerente que a sua doutrina sofreu, sofre, e sofrerá ao longo dos tempos; quer seja para melhor ou para pior no momento imediato, mas sempre confiante que o magnífico pêndulo da história se movimenta para o bem. Por isto, as antigas teses filosóficas são de extrema importância, desde que sofram mutações ao longo do tempo, com o objetivo de as aperfeiçoar e de as adaptar às condições do presente.